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precauções e escuta do fogo, da chama e da luz

texto crítico da exposição individual Condições de Uso. 2017



“…reduzir a cinzas…ficar quase nada, quanto muito é o peso da alma imensa…”

CENDRES LA GLOIRE revers
de tes mains heurtées-nouées pour jamais
sur la triple fouche des routes
(…)
Cendres –
La gloire, revers de vous –
fouche triple mains.
Au-devant, cequi, de l’est,
vers vous terrible, est jeté.
1

…areias de cor indecisa
são bons estes lugares de cinza,
para a solidão insuspeita dos pássaros…
2

…Queimado o que melhor houver,
O fumo vem, a chama passa...
3

Teu cabelo de cinzas Sulamita
cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado…
4


A residência de Tchelo foi profícua na concepção e produção de obras únicas e singulares, demonstrando uma persistência e convicção inigualáveis para cumprir o escopo ansiado. Assim, considerem-se as peças e intervenções localizadas em dois locais: na Quase Galeria/Espaço t e no Museu Nacional Soares dos Reis.

Tchelo empreendeu as suas incursões pela cidade, desde o início da sua estadia no Porto. Percorreu as ruas emblemáticas da cidade em busca de lojas antigas, depósitos e outros locais onde pudesse recolher elementos, com os quais viria a produzir as suas peças. Pretendia, sobretudo, objetos em madeira ou aglomerados, partes cortadas de mobiliário, barrotes, fragmentos de vigas, assim como ramos partidos de árvores.

Uma das grandes descobertas, para além dos materiais que obteve no próprio grande depósito da Escola de 1º ciclo da rua do Sol/ Espaço t – onde estabeleceu um dos seus ateliês, consistiu na oportunidade de conhecer o Sr. Artur, torneiro e proprietário de uma marcenaria na rua Conde de Viseu (ativa desde 1920), onde se forneceu com uma grande variedade de peças torneadas. Esse encontro foi uma inspiração, sedimentada na solidão do Sr. Artur que mantém – contra ventos e marés - a sua oficina, uma pequena porta na fileira de fachadas seguidas dessa rua. As dezenas de peças torneadas que, de outro modo desapareceriam sem mais rastro, converteram-se, elas próprias em suportes de desenho e, simultaneamente, em desenhos conseguidos através de sua própria matéria carbonizada. Assim, se gerou uma notável série intitulada, parafraseando o fato de terem integrado a “coleção” da oficina do Sr. Artur, passando a serem parte integrante de uma coleção alterada – mudaram de “dono” e pertença, autorizando-se a serem obras tridimensionais em exposição de arte contemporânea.

A ação levada a cabo por Tchelo, independente das obras e séries que agora podemos conhecer nas suas duas exposições individuais no Porto, resgata peças, fragmentos, pedaços de materiais obsoletos em matéria de desenho e desenho em si, constituindo uma operação que, com José Ernesto de Sousa, poderíamos apelidar de “estética”. Trata-se aqui de vermos objetos que auferem de uma qualificação estética, advertindo-nos para a condição de uso, que é exatamente, o usufruto artístico.

Na visita ao primeiro ateliê improvisado confrontei-me com a vasta compilação de elementos díspares que se percebia em estado de espera. As primeiras manobras estavam lançadas e existiam vestígios de ensaios: um verdadeiro estaleiro e laboratório onde se iam suceder várias tentativas, erros e superações inusitadas, reverberando a dimensão exploratória que caracteriza a obra desenvolvida por Tchelo desde há vários anos.

O processo recoletor cruzando percursos na cidade e saídas até à vila de Cerveira para absorver informações e se aproximar dos recursos naturais e paisagísticos, quer urbanos, quer naturais, assim como uma visita imprescindível à Fábrica Viarco (S. João da Madeira), ampliou significativamente, transparecendo na profusão de obras a serem produzidas, cumprindo uma atitude compulsiva para criar.

No ambiente da Quase Galeria foram instaladas as obras concebidas especificamente para o local. Num trajeto de quase introspecção e interioridade, evidenciam-se as matérias que se transfiguraram diretamente em obra, sendo instrumentos privilegiados de suas condições de uso. Assim os cinco barrotes, perfilados na diagonal e encostados à parede exterior da Sala, traçam a negro carbonizado a geometria de uma hipotética linha de horizonte desequilibrado que o nosso olhar alonga e prolonga imaginariamente. Alinham-se bordejando as paredes interiores obras específicas que percorrem a inventividade de Tchelo.

É um aviso prévio para que o desenho se deve reconhecer sob uma pele carbonizada da madeira que desvela a sua quase pré-existência, a forma invisibilizada pela matéria que o artista dá a ver, parafraseando as grandes convicções de Miguel Ângelo que, enquanto escultora, acreditava a sua missão consistir em retirar o excesso de mármore ou pedra para fazer emergir a forma que nela residira. Na obra de Tchelo, pela ação da chama, o desenho renasce da sua própria matéria, seja a madeira ou o papel.

O denominador comum, já se afirmou antes, é o fogo. Esse fogo que, aqui vemos de novo comprovado, é parente daquele que Prometeu roubou aos deuses. É um fogo, através de sua chama, sendo conduzido por mão certeira e metódica. Usando o tempo de combustão, para marcar com a maior precisão a área tratada. Prometeu, na história da cultura e da Arte europeias, é um mito frequentemente retomado, devido às circunstâncias efabulatórias que o condenaram, paradigma da emancipação que preconizou aos homens: o conhecimento e a vontade. As remitologizações poéticas de Prometeu sucedem-se, permitindo-me destacar uma das mais emblemáticas ainda que incompleta, a de Goethe: Prometeu (Fragmento Dramático da Juventude)
5, embora sejam de referência imprescindível as obras de Ésquilo6 — Prometeu Agrilhoado e, ainda, a primeira manifestação literária por Hesíodo7, dois séculos aproximadamente antes do poeta dramático. No caso português, Almada Negreiros tomou como um dos fundamentos do seu pensamento estético e artístico exatamente a figura de Prometeu, no que revela da acepção concomitante ao Mito da Queda. A Queda pode tomar diferentes acepções metafóricas, sendo em última instância uma redenção, uma remissão – precisamente pelo fogo na sua assunção purificadora.

É, portanto, uma ação de imensa responsabilidade quando, à semelhança do herói mitológico, o artista brasileiro trabalha com o fogo e a chama. Por outro lado, associa- se à ruptura transfiguradora, instaurada pelo pensamento da matéria cosmológica, na senda de Bachelard, como se referiu. Ainda, de assinalar a conivência a artistas do pós-guerra italiano, que o artista assinala, ao titular uma das peças, em paráfrase ao ideário de Lucio Fontana. O concetto spaciale converte-se em conceito geométrico transposto em mutações estéticas. Há, pois, que considerar diferentes tipos de ações decididas por Tchelo: Ação de alterar a superfície da madeira, espetando bastões de carvão que desenham a dispersão no espaço temperado onde residem dimensões sucessivas ou, ainda, pela irregularidade das “linhas em queda” que se desprendem da nossa percepção visual, háptica diria mesmo.

Ação de irromper na superfície da tela consiste, também, numa analogia onde se visibiliza a forma geométrica pela ação da madeira carbonizada, em desenho que é sugerido pela própria forma do material apropriado, outorgando-lhe uma derradeira oportunidade, para existir como obra de arte tridimensional, ultrapassando a dispensabilidade funcional anterior.

Ação de traçar linhas espessas, firmes tanto quanto podem ser sutis e quase imperceptíveis em bases de morfologia regular que assim foram achadas. Apenas revela o que já lá estava, desocultando (Heidegger dixit). E, poder-se-iam distinguir ainda outras ações que sejam desdobramentos das três essenciais, aqui mapeadas mas que, repito, se não esgotam em variantes que os materiais e as chamas, o fogo dirigem para atingir, para consecução de sua intencionalidade substantiva e conceitual.

Os desenhos, tal como Tchelo os concebe, decorrem da matéria que os integra e lhes adverte corporalidade. Ou seja, podemos considerar tipologias de desenho a diferenciar:

1. Desenhos que se desvelam (revelam) como tal pela ação que Tchelo realiza ao delinear-lhes através da chama a morfologia bidimensional e gráfica. São: o caso das peças torneadas colocadas numa das prateleiras, onde se evidenciam as formas planas sob tutela curvilínea; o caso das peças compósitas, de indexação geométrica regular, retângulo, triângulo e quadrado
– de diferentes medidas e proporções, cujas faces são assinaladas pela queima, assim destacando as respectivas superfícies, num diálogo perceptivo- visual.

2. Desenhos carbonizados que se arrastam em linhas vestígios da ação de queimar a superfície do papel, rasgando-se em formas irregulares, cuja descida de linhas carbonizadas parece ser sugada pela força da gravidade. São desenho de linhas carbonizadas escorridas.

3. Desenhos, cujo perímetro é geométrico, avolumando na sua bidimensionalidade a área pintada pela chama do maçarico a gás. A superfície ilude-nos, pois parece ter sido agarrada, ou impregnada, por uma densidade cromática, delimitados os seus contornos perfeitos por uma qualquer tinta, e nunca se suspeitando que, essa pele da madeira fosse originada pela chama.

O fogo de Prometeu, mito que impregna ainda os nossos dias, é domesticado, atendendo à forma como é conduzido no exercício artístico por Tchelo. Dir-se-ia que quase o dionisíaco se transforma em apolíneo. À semelhança, aliás, do que se pode afirmar quanto à tragédia grega, quando esta significava a possibilidade de transcender o tempo, para atingir o estádio estético, precisamente como o fenômeno estético justifica o fato do próprio mundo existir eternamente, pelo fogo que garantia a sobrevivência. Prometeu como herói, protagonista direto da tragédia grega, estabeleceu a conciliação, pois possuía dupla natureza, a sua essência, apolínea e dionisíaca...

Ainda, lembrar, com Almada Negreiros e a propósito dos princípios que consignam o desenho que este é graficamente o gerador e receptor dos sinais visuais simples, os geométricos muito em particular, constituindo essa linguagem que apelidou de Antegrafia. Ou seja a linguagem de valência universal, anterior à escrita e que circulava a capacidade dos humanos – em tempos e geografias díspares – saberem comunicar entre si no anonimato da humanidade. Pela geometria e pelo desenho que ad simultaneum, um e outro compartilham características definidoras, sendo:

— conformadores de pensamento primitivo;
— possuidores de sentido universal;
— expressões da natureza mais recôndita do humano, pela via da intuição elaborada;
— instituidores da consciência pessoal;
— forças intrínsecas presente na vida de cada um e de todos os seres humanos.

O poder do fogo, sob a égide do reconhecimento humano que o instituí, à semelhança dos demais três elementos do Cosmos, é configurador polissémico, ajustado pelas constrições e direcionamentos culturais que o intemporalizam. A ação derradeira, ousadia máxima sobre o civilizacional é o incêndio que consumisse a sabedoria acumulada na História. Assim, a imagem de livros queimados remete sempre para a destruição que as sociedades têm provocado, as grandes catástrofes que aniquilam testemunhos e memórias insubstituíveis. Lembramos a inqualificável KristalNacht, o desaparecimento da Biblioteca de Alexandria ou outras perdas irreparáveis da vida e dos vestígios societários.

No caso de “Resumo”, será o livro que recolhe os desenhos impossíveis, tornados concretização abre-se. Também contém todas as lendas dos heróis que povoam a nossa contemporaneidade, donde Prometeu, tomado por Almada Negreiros como símbolo privilegiado da Europa, assume hoje uma desproporcionada responsabilidade que, distantemente poderá ecoar no Brasil, país donde é originário Tchelo.

Reitere-se como, através da mediação do fogo e da chama, o compromisso do desenho se desdobra, se multiplica na maior responsabilidade, originando obras únicas mediadas pelo tempo que o artista concede à combustão sobre a matéria. A mão, que Henri Focillon tanto elogiou, é com toda a propriedade o instrumento mediador que aciona ou elimina a deliberação, em plena consciência das consequências estéticas assumidas.

O fogo não é imóvel, mas é fogo quieto quando é chama. O fogo vive e dorme, é um fogo vivido. Ainda que sendo chama, fogo aquietado, é vivo, acionando forças que consolidam a civilização ou empurram para o declínio. A chama, seguindo de novo Gaston Bachelard8, remete para a condição de fogo que se associa ao aconchego do lar, que aquece, que alimenta que acarinha, proporcionando um ambiente cálido – um ambiente dentro. A chama é a externalidade de um fogo conduzido, um fogo que, portanto, é possuído e dominado q.b. Esse fogo que reside na chama é uma interiorização de forças de um pequeno cosmos, suscitando uma coesão de imagens que vivemos na sua variedade prodigiosa: “as imagens do fogo são, para o homem que sonha, para o homem que pensa, uma escola de interioridade.”
9

A sua força, a sua intensidade são imensas numa potencialidade imaginada que consigna o real, o sobrevoa e a ele pode regressar na condição de obra intervencionada, pela sua ação. A sua ação, nas peças de Tchelo, oscilam entre a luz que emana da chama controlada e a negritude da pinta que do interior da matéria como se suga a si própria, gerando superfície (pele) pintada. O carvão resulta da combustão da madeira que, por sua vez, sendo um organismo vivo, possui condição de fim, como humano, donde ser uma potência polissêmica também. O carvão em escorrência torna-se uma poeira que cai sobre o rodapé ao longo da parede da Sala da Quase. E, esse pó de carvão – que serve de instrumento de desenho é a sua substância de obra, seu resíduo e sua dissolução. Cai no chão, no soalho que, por sua vez, é de madeira antiga e comida pelo calor do sol que a queima. As sobreposicionalidades sucedem-se, acrescendo à leitura das suas peças, uma ambiguidade espiralada, que me suscita pensar na figura do Oruborus – a serpente que mordera própria cauda, num procedimento gerador pois que envolve o princípio feminino e o princípio masculino, um ciclo sem fim.10

A chama de uma vela11, tomando o título de Bachelard, é a chama de um maçarico a gás que Tchelo domina sem dúvida ou resistência. Não tem a poética do fogo que habita a casa, mas alimenta a intencionalidade estética, conferindo à matéria a sua dimensão artística. Os rastos deixados pelo carvão são uma espécie de líquido orgânico que escorre, numa simbiose quase intrínseca com a natureza, transmutada, transposta no galho sozinho que o artista achou por acaso nos montes de Gondar (próximo a Cerveira, Norte de Portugal). É também uma poética da natureza, antes de ser paisagem – deliberação cultural, portanto em estado de utopia…

Há um chamamento de solidão que subjaz no processo de trabalho de Tchelo. Solidão na procura, lentidão no achamento dos pequenos elementos que decide serem a matéria da sua criação, em propostas que quase consideramos alquimias na atualidade saturada. Lembre-se a imagem pregnante de Bachelard: “a solidão do sonhador da chama”, que aliás intitula um dos significativos capítulos de Flamme d’une Chandelle: “O sonhador sonha com a solidão do outro para encontrar um certo reconforto.”

De alguma forma estas obras realizadas em Portugal, na sua numerosa e profusa tenacidade possuem a força e convicção de rituais purificadores, rituais de passagem. Passagem é um termo que, neste caso de deve entender numa dupla via: porque o artista em residência está de passagem; por outro lado, porque efetivamente, a sucessão e profusão de obras estipulam um desafio, uma exigência que o artista se coloca a si próprio, em processo, em consequência, em abertura à próxima situação com que se depare. Rituais de passagem que, em última instância, podem muito frequentemente ser entendidos, e sob distintas perspectivas como fundamento (e essência) propulsora dos atos criadores. Baseado na intuição, na genuinidade de procedimentos regularizados e exatos, porque definidos com antecedência, numa metodologia programada.

O fogo idealizado é pureza, ideia que é analisada por Bachelard em Psychanalyse du Feu, considerando-lhe a dimensão sublimadora dialética (e não contínua).
12

Há um respeito pela chama, uma anuência de homenagear o fogo que Tchelo traz dos tempos imemoriais do humano, para a mais lúcida animação estética do quotidiano cultural. Esse respeito cohabita com a invulgar capacidade que possui para dominar os materiais que são incandescentes, combustíveis, de uma tal forma, que as motivações conceituais para gerar obras, umas como consequência, sejam elas continuidade ou antônimo das anteriores. É a força reparadora do fogo, não a sua destruição. Será uma Fenix renascida das cinzas, enfim.

Pó, cinza e nada é uma expressão popular que adverte para a efemeridade da vida humana, anunciando a consciência da passagem fugaz e, assim mesmo, das consequências de um mau uso da vida… nada, sabe-se que não existe. O vazio, a ausência de ou o silêncio preenchem-se sempre de algo, infrutífero ou prolífero. O “nada” é visibilizado em matérias voláteis, donde de forma recorrente, ao longo da história das ideias e das artes, encontrar-se menção ao “pó” e às “cinzas” para reforçar a intensidade semântica [de incidência psicoafetiva, muito singular…] que alcança. Remete para um escopo derradeiro e autofágico, para indexações escatológicas e apocalípticas, em certos casos evidenciadoras, assinale-se.
Quer o pó, quer as cinzas descem e pousam, sedimentando e/ou sendo absorvidas pela terra, pelas águas, sopradas pelo vento (ar). O pó e as cinzas resultam, sendo efeito, por vezes, da ação do fogo. Os quatro elementos são, pois, sua razão direta ou indireta – por motivos específicos; são agentes na sua gênese, na substancialidade e, consequentemente, na sua precária duração (ou não) e dissolução simbólica ou efetiva. Trata-se de conceitos fortes que estimularam o imaginário poético e iconográfico, focando-se a propósito da obra de Tchelo, mais diretamente as “cinzas”. No magnífico texto de apresentação do livro Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana de Enrico Testa, pode ler-se, em referência a poema que este dedicou a Edoardo Sanguineti, publicado em Ablativo
13: “Num movimento que pode ir em direção a alguém ou a alguma coisa que é ausente, mas que, com esse gesto, se torna presente na sua ausência, como acontece com o fogo e as cinzas.”14 As cinzas associam-se, frequentemente, à ausência, sendo em simultâneo presente e passado traçando um paradoxo em evanescência.

Confrontando a história da literatura, a dramaturgia ou o cinema, inúmeras são as referências que reverberam as polissemias agregadas às cinzas. As cinzas decorrem, são consequência de materiais incandescentes, estimulados a esgotarem-se, a exaurirem-se. É uma intencionalidade, uma pragmática, um uso, deixando vestígios, rastros e indícios: tudo em pouco e leve. “Das cinzas às cinzas” eis a consignação irreversível que se anuncia na vida, ideia expandida, por exemplo, em Ashes to Ashes (Cinzas às cinzas), de Harold Pinter
15 surgiu a público em 1996, sendo uma proclamação contra as barbáries do mundo, a violência e as ofensas aos direitos humanos, subsumida na relação pática entre as duas personagens – Devlin e Rebecca. Tudo se reduz a cinzas, sendo tomadas na mais complexa fruição, em termos de criação poética, assim como artística, perpassando as indexações mítico- simbólicas, antropológicas, teológicas, ontológicas…entre todas as demais disciplinas que as glosam. As cinzas remetem para o peso da História, na Europa como em muitas e muitas culturas e civilizações, transcendendo o tempo e assumindo a condição derradeira do humano, quer quando atinge os seus semelhantes, quer quando se consigna a si próprio.

A narrativa inicia-se com as cinzas que Tchelo quis resultassem do peso de vários sacos de carvão, conformes ao seu próprio peso, no caso 78 kgs. O peso do carvão em bruto, transpôs-se no monte de cinzas que lhes corresponde num monte que as reúne. Assim, a pirâmide quase geométrica, evoca a morfologia de um vulcão, tornando-se uma redundância inesperada. De dentro do vulcão explode o fogo, que se derrete em lava e cospe cinzas na paisagem. As cinzas-corpo desta obra in situ produzida por Tchelo são cinzas tranquilas, quietas da efabulação de um organismo vivo. Convertem-se numa peça celebratória do corpo do artista como metáfora da criação e do pensamento que a impulsiona.

 

As cinzas assumem o desígnio de um monumento dentro de um espaço museológico carregado pelo Peso da História [relembrando aqui o título da obra escultórica de Pedro Valdez Cardoso presente no Museu]. As cinzas cobrem e protegem, como ocorreu em Pompeia ou Herculano. Preservam para o além-tempo, corpos e gestos de quotidiano que de outra forma se teriam desfeito e tido continuidade e rotina. As cinzas lembram tanto o excesso de calor, quanto o frio, cinestesia poeticamente explorada por Manuel Bandeira, por exemplo no poema “Epígrafe”, onde o poeta brasileiro metaforiza o amor acabado, a título de exemplo, entre tantos outros a nomear.
 

 

Maria de Fátima Lambert
 


1 Paul Celan, ASCHENGLORIE (traduction André du Bouchet). In http://www.idixa.net/Pixa/pagixa-1308260828.html (acedido em 07 junho 2017)
2 Alberto, “Outras feridas”, Vigílias, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004, p.25
3 Manuel Bandeira, “Chama e fumo”, Cinza das Horas, 1917
4 Paul Celan, « Fuga para a morte » in https://copodemar.wordpress.com/category/escritores/paul-celan/ (acedido em 07 junho 2017)
5 Segue-se para confronto e citação nesta Tese a tradução do Prof. Paulo Quintela, na 2ª edição de Coimbra, 1955. Segundo informação do Prof. Paulo Quintela em nota de rodapé ao Prefácio desta 2ª edição, na p. 23, existe uma outra tradução do fragmento dramático em português na "Biblioteca Nacional de Lisboa, sob rubrica L 10406 V: "Prometheo/ Fragmento Dramatico — 1773/ Goethe/ Posto em verso portuguez /por/ Joaquim Jose Teixeira /natural do Rio de janeiro / Rio de Janeiro/ Typographia Universal de L. & H. Laemmert/ Rua dos Invalidos, 71 /1879".
6 Ésquilo, no século V, teve obra activa posterior a 475, embora sem que haja concordância entre os historiadores, quanto às datações de diferentes obras suas. No caso de Prometeu, é situado entre os Sete e a Oresteia, ou seja, entre 467 e 458. (Cf. Raymond Trousson, op. cit., p.23. Em Atenas existia a tradição popular do culto de Prometeu., patrono dos oleiros e dos ferreiros, venerado junto a hefesto, em altar comum, embora fosse um mito anterior ao de Hefesto. Parece então que as fontes de Ésquilo não se podem limitar apenas aos poemas hesíodocos. O Prometeu Agrilhoado seria parte integrante de uma Trilogia dedicada à figura de Prometeu, constituída ainda por Prometeu Libertado e Prometeu portador do fogo. Prometeu Libertado seria a sequência de Prometeu Agrilhoado, supondo que o herói do mito se veria liberto por Zeus, após suplício de 30 mil anos. Segundo o Catálogo das obras de Ésquilo, havia uma terceira tragédia, o Prometeu portador do fogo, acerca do qual praticamente nada se sabe. Cf. Raymond Trousson, op. cit., p.38, pois segundo este autor, a figura de Prometeu não se apresenta como "a tragédia da revolta humana. Nele, a oposição entre homens e deuses é feita de diferenças e não de hostilidade. A liberdade e a vontade do homem deverão ser temperadas pelo temor e pelo respeito para com os Imortais. Também aqui, Ésquilo, tal como Sófocles e Eurípedes, nos previne contra a incontinência e o orgulho."
7 Segundo Raymond Trousson, Hesíodo deteve-se por duas vezes nas aventuras de Prometeu: na Teogonia surge desde o verso 507 até ao 616. Prometeu é apresentado como o "ladrão do fogo", narrada a sua ascendência e apenas depois é que Hesíodo explica o motivo que lhe provocou o castigo. É apelidado de "bemfazejo Prometeu", por ter dado o fogo aos homens. Na segunda obra de Hesíodo,
8 Gaston Bachelard, Fragments d’une Poétique du feu, Paris, , Les Presses universitaires de France,1988, pp.6-7
9 Gaston Bachelard, Idem, p.7
10 Cf. Jean Chevalier – Diccionário de Símbolos, Barcelona. Ed. Herder, 1987, p. 101
11 Gaston Bachelard, La flame d’une chandelle, Paris, Les Presses universitaires de France, 1961
12 Gaston Bachelard, La Psychanalyse du Feu, Paris, Éditions Gallimard, 1992, p.111 e ss.
13 Enrico Testa, Ablativo. Trad. Patricia Peterle, Andrea Santurbano, Silvana de Gaspari. São Paulo, Rafael Copetti Editor, 2014, p. 65.
14 Enrico Testa, Cinzas do século XX: três lições sobre a poesia italiana, Rio de Janeiro, 7 Letras Ed., 2016, p.9. In http://img.travessa.com.br/capitulo/7_LETRAS/CINZAS_DO_SECULO_XX_TRES_LICOES_SOBRE_A_P OESIA_ITALIANA-9788542104554.pdf (acedido em 07 junho 2017)
15 Harold Pinter, Ceneri alle ceneri. Edição bilíngue. Torino, Einaudi, 1997 [1996].

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